sexta-feira, 19 de março de 2010

Strip

O apelo da rua suja faz-se sentir. A Melânia, onde paravam os "drógados" como dizia a minha mãe, é uma memória triste há muito tempo enterrada; as oliveiras, palco das minhas aventuras de fim-de-semana, aquele pedaço de campo que animava os filhos desterrados do Alentejo e das Beiras, como eu e os meus amigos, está sepultado debaixo de mais alguns caixotes de cimento.

Vejo o meu irmão a passar de bicicleta, o meu pai a fumar o seu cigarro na janela, ausente no seu mundo secreto, o barulho dos padeiros a trabalhar e o calor doentio que transpira das paredes.

Os miúdos que conheci morreram. Uns, de facto, outros, juntaram-se ao exército da Melânia, porque há sempre uma Melânia algures, e outros ainda, cresceram para se tornar prematuramente velhos e amargos. Outros estão sozinhos, com sorrisos pintados.

E depois, aqui estou eu. Uma mistura de um pouco de todos eles, porque as suas memórias estão agarradas a mim, como um cheiro que se entranha nas unhas e nos cabelos e junto aos ossos.

Hoje apetecia despir-me do meu apartamento de luxo, do meu carro da moda, da roupa de marca e da vida marcada.

Hoje apetecia-me voltar áquele olival, voltar a passar pelos olhares esfomeados que paravam à porta da Melânia e que me abordavam dizendo que conheciam "muito bem" o meu pai. Apetecia-me voltar a correr atrás do meu irmão. Mas ele vai de bicicleta e eu não consigo apanhá-lo. E o meu pai olha lá de cima, da janela. E a cinza do cigarro cai. Cinzenta e cada vez mais fria.

Como eu.