sábado, 1 de maio de 2010

Fome

A barriga está cheia, as pernas flácidas e os olhos entreabertos quase conseguem afogar a chama moribunda que ultimamente teima em brilhar, clandestina. Nos últimos tempos, uma fogueira mal apagada tem estalado e respirado o fogo que ele julgava extinto.

Ultimamente, ele tem sentido qualquer coisa a mexer debaixo da pele. Acorda-o de noite e aperta-lhe a garganta com dedos que, não sendo os dele, também o são.

Ultimamente, o punho cerra-se sozinho e os músculos que pensava terem desistido contraem e pulsam. Os dentes cerram e o sangue galopa mais rápido debaixo da mortalha de vida mal vivida que tem sido o seu disfarce.

Ultimamente, ele sente-se mal. Sente-se vivo. E viver dói. É a dor de um parto que não consegue evitar. Ele tenta afogar este animal que se contorce lá dentro, nas cavernas outroras escuras e secas.

Ultimamente, ele esquece-se do caminho de casa e deixa-se seguir até a gasolina acabar ou sol o surpreender numa estrada nacional qualquer.

Ultimamente ele luta. Ele que pensava que já não havia nada pelo que lutar.

Ultimamente, ele quase tem pena que as lágrimas tenham secado.

Ultimamente ele quer chorar. E matar e morrer. Porque, ultimamente, ele desconfia que, afinal, está vivo. E dói. E é bom.